05/04/2020

Íntegra da quarta pregação da Quaresma do frei Cantalamessa

por Boa Semente

As palavras de Jesus a Maria: “Mulher, este é o teu filho”, e a João: “Esta é a tua mãe”, têm certamente, um significado imediato e concreto. Jesus entrega Maria a João e João a Maria.

Cidade do Vaticano

Fr. Raniero Cantalamessa, OFMCap.

“MULHER, ESTE É O TEU FILHO!”

Maria, mãe dos fiéis

Quarta pregação da Quaresma de 2020

“Ali todos nascemos”

Continuemos e concluamos nossa contemplação de Maria no mistério pascal. O objetivo de nossa reflexão hoje é a palavra que Jesus dirige da cruz à sua mãe e ao discípulo que ele amava:

Jesus, ao ver sua mãe e, ao lado dela, o discípulo que ele amava, disse a sua mãe: ‘Mulher, este é o teu filho’. Depois disse ao discípulo: ‘Esta é a tua mãe’. Daquela hora em diante, o discípulo a acolheu consigo (Jo 19,26-27).

No fim das nossas considerações sobre Maria no mistério da Encarnação, contemplamos Maria como Mãe de Deus; agora, no fim das nossas reflexões sobre Maria no Mistério Pascal, vamos contemplá-la como Mãe dos cristãos, como nossa Mãe.

É preciso logo dizer que não são dois títulos ou duas verdades a serem colocadas no mesmo plano. “Mãe de Deus” é um título definido solenemente; baseia-se numa maternidade real, não só espiritual; tem um relacionamento muito estreito e, aliás, necessário com a verdade central da nossa fé, que é Jesus Deus e Homem na mesma pessoa; e, por fim, é um título universalmente aceito na Igreja. “Mãe dos fiéis”, ou “Nossa Mãe”, é título que indica uma maternidade espiritual; tem um relacionamento menos estreito com a verdade central do Credo; não se pode dizer que tenha sido aceito no cristianismo “em toda parte, sempre e por todos”, mas reflete a doutrina e a piedade de algumas Igrejas, particularmente da Igreja católica, mas não só dela, como vamos ver.

Sto. Agostinho ajuda-nos a perceber logo a semelhança e a diferença entre as duas maternidades de Maria. Ele escreve:

“Maria, corporalmente, é mãe só de Cristo; mas, espiritualmente, enquanto faz a vontade de Deus, é para ele irmã e mãe. Espiritualmente ela não foi mãe da Cabeça, que é o próprio Salvador, do qual espiritualmente ela nasceu; mas certamente é mãe espiritual dos membros que somos nós porque, com a sua caridade, cooperou para o nascimento da Igreja dos fiéis, que são os membros daquela Cabeça”[1].

O nosso objetivo, nesta meditação, seria ver toda a riqueza que há por detrás desse título e o dom de Cristo que ele contém, de maneira que possa servir não só para honrarmos a Maria com mais um título, mas para nos edificar na fé e crescer na imitação de Cristo.

Também a maternidade espiritual, analogamente à física, realiza­-se em dois momentos e em dois atos: conceber e dar à luz. Nenhum deles sozinho é suficiente. Maria passou por esses dois momentos: espiritualmente nos concebeu e gerou. Concebeu-nos, isto é, acolheu-nos em si, quando – talvez no momento mesmo do seu chamado, na Anunciação, e certamente em seguida, quanto mais Jesus avançava na sua missão – foi descobrindo que aquele seu filho não era um filho como os outros, uma pessoa particular, mas era um primogênito entre muitos irmãos (Rm  8,29), que ao redor dele reunia-se um “resto”, formava-se uma comunidade.

Esse foi, pois, o tempo do concebimento, do sim do coração. Agora, junto da cruz, é o momento do sofrimento do parto. Neste momento, Jesus dirige-se à sua mãe chamando-a de “Mulher”. Ainda que não o possamos afirmar com certeza, sabendo que João costuma falar também usando alusões, essa palavra faz-nos pensar naquilo que disse Jesus numa outra oportunidade: A mulher, quando está para dar à luz, sente tristeza porque é chegada a sua hora (Jo 16,21), e naquilo que se lê no Apocalipse, a respeito da “Mulher grávida que gritava com ânsias de dar à luz” (cf. Ap 12,1ss). Ainda que essa Mulher seja, em primeira linha, a Igreja, a comunidade da nova aliança que dá à luz o homem novo e o mundo novo, Maria também está pessoalmente contida nessa figura, como início e representante dessa comunidade crente. Essa justaposição entre Maria e a figura da mulher foi, no entanto, logo recebida pela Igreja. Santo Irineu (discípulo de São Policarpo, discípulo de João, por sua vez!) Vê em Maria a nova Eva, a nova “mãe de todos os viventes”[2].

Mas voltemo-nos agora para o texto de João, para ver se já contém algo disso que estamos dizendo. As palavras de Jesus a Maria: “Mulher, este é o teu filho”, e a João: “Esta é a tua mãe”, têm certamente, antes de tudo, um significado imediato e concreto. Jesus entrega Maria a João e João a Maria. Mas isso não esgota o significado da cena. A exegese moderna, tendo feito enormes progressos no conhecimento da linguagem e dos modos de expressão do Quarto Evangelho, está ainda mais convencida disso do que nos tempos dos Santos Padres. Como dizem, se o trecho de João for lido só de maneira imediatista, como se fossem últimas disposições testamentárias, dá a impressão de ser “um peixe fora d’água”, totalmente dissonante com o contexto onde se encontra. Para João, o momento da morte é o momento da glorificação de Jesus, do cumprimento definitivo de todas as coisas. Toda sentença e toda palavra nesse contexto também têm um significado simbólico e aludem ao cumprimento das Escrituras.

Dado esse contexto, forçamos mais o texto vendo nele apenas um significado particular e pessoal do que lendo aí, com a exegese tradicional, também um significado mais universal e eclesial, ligado, de algum modo, à figura da “mulher” de Gênesis 3,15 e de Apocalipse 12. Este significado eclesial é que o discípulo não é apenas João, mas o discípulo de Jesus enquanto tal, todos os discípulos. Eles são entregues a Maria como filhos por Jesus no momento da sua morte, do mesmo modo que Maria é entregue a eles como mãe.

As palavras de Jesus às vezes descrevem algo já presente, isto é, revelam o que existe; às vezes, criam e mandam existir o que exprimem. A esta segunda ordem pertencem as palavras de Jesus dirigidas a Maria e a João no momento da morte. Dizendo: Isto é o meu corpo…, Jesus transformou o pão no seu corpo; assim também, com as devidas proporções, dizendo: Esta é a tua mãe, e Este é o teu filho, Jesus constitui Maria mãe de João e João filho de Maria. Jesus não apenas proclamou a nova maternidade de Maria, mas a instituiu. Esta, pois, não vem de Maria, mas da Palavra de Deus; não se baseia no mérito, mas na graça.

Debaixo da cruz, Maria mostra-se, pois, como a filha de Sião que, depois do luto e da perda dos seus filhos, recebe de Deus novos filhos, mais numerosos que antes, não segundo a carne, mas segundo o Espírito. Um salmo, que a liturgia aplica a Maria, diz: “Na Filisteia ou em Tiro ou no país da Etiópia, este ou aquele ali nasceu’. De Sião, porém, se diz: ‘Nasceu nela todo homem…’”, “Deus anota no seu livro, onde inscreve os povos todos: ‘Foi ali que estes nasceram’ (Sl 87,4ss). É verdade: todos nascemos lá! Dir-se-á também de Maria, a nova Sião: estes e aqueles dela nasceram. De mim, de ti, de cada um, também daquele que ainda não o sabe, no livro de Deus está escrito: “Este ali nasceu”.

Mas, por acaso, não “renascemos da Palavra de Deus viva e eterna” (cf. lPd 1,23)?; não “nascemos de Deus” (Jo 1,13), renascidos “da água e do Espírito” (Jo 3,5)? É a pura verdade, mas isso não impede que, num sentido diferente, subordinado e instrumental, tenhamos nascido também da fé e do sofrimento de Maria. Se Paulo, que é um servo e um apóstolo de Cristo, pode dizer aos seus fiéis: Fui eu que vos gerei em Cristo Jesus, por meio do Evangelho (1Cor 4,15), quanto mais pode dizê-lo Maria, que é a mãe dele! Quem, mais do que ela, pode fazer suas as palavras do Apóstolo: Filhinhos meus, por quem de novo sinto as dores do parto (Gl 4,19)? Ela nos gera “de novo” debaixo da cruz, porque já nos gerou uma primeira vez, não na dor, mas na alegria, quando deu ao mundo a Palavra viva e eterna, que é Cristo, na qual fomos regenerados.

Como antes aplicamos a Maria, sob a cruz, o canto de lamentação da Sião destruída, que bebeu do cálice da ira divina, assim agora, confiantes nas potencialidades e riquezas inesgotáveis da Palavra de Deus, que vão muito além dos esquemas exegéticos, aplicamos a ela também o canto da Sião reconstruída depois do exílio que, cheia de admiração, olhando para os seus novos filhos, exclama: Quem me gerou estes filhos? Eu não tinha filhos, era estéril, quem os criou? (Is 49,21).

A síntese mariana do Concilio Vaticano II

A doutrina tradicional católica de Maria Mãe dos cristãos recebeu uma nova formulação na Constituição sobre a Igreja do Concilio Vaticano II, onde ela está incluída no quadro mais amplo do lugar de Maria na história da salvação e no mistério de Cristo.

“Predestinada desde a eternidade junto com a Encarnação do Verbo divino, como Mãe de Deus, por desígnio da Providência divina, a Bem-aventurada Virgem foi nesta terra a sublime mãe do Redentor, singularmente mais que os outros Sua generosa companheira e humilde serva do Senhor. Ela concebeu, gerou, nutriu a Cristo, apresentou-O ao Pai no templo, compadeceu com seu Filho que morria na cruz. Assim de modo inteiramente singular, pela obediência, fé, esperança e ardente caridade, ela cooperou na obra do Salvador para a restauração da vida sobrenatural das almas. Por tal motivo ela se tornou para nós mãe na ordem da graça”[3].

O mesmo Concílio preocupa-se em determinar exatamente o sentido dessa maternidade de Maria, dizendo:

“A materna missão de Maria em favor dos homens de modo algum obscurece nem diminui esta mediação única de Cristo, mas até ostenta sua potência, pois todo o salutar influxo da Bem-aventurada Virgem em favor dos homens não se origina de alguma necessidade interna, mas do divino beneplácito. Flui dos superabundantes méritos de Cristo, repousa na sua mediação, dela depende inteiramente e dela aufere toda a força. De modo algum impede, mas até favorece a união imediata dos fiéis com Cristo”[4].

Ao lado do título de Maria Mãe de Deus e dos fiéis, a outra categoria fundamental que o Concílio usa para esclarecer a função de Maria, é aquela de modelo, ou de tipo:

“Em virtude da graça da divina maternidade e da missão pela qual ela está unida com seu Filho Redentor, e em virtude de suas singulares graças e funções, a Bem-aventurada Virgem está também intimamente relacionada com a Igreja. Já Sto. Ambrósio ensinava que a Mãe de Deus é o tipo da Igreja na ordem da fé, da caridade e da perfeita união com Cristo”[5].

A novidade maior deste tratado sobre Maria consiste, como se sabe, nele ser colocado no contexto do tratado sobre a Igreja. Com isso, o Concílio – não sem sofrimentos e feridas, como é inevitável nesses casos – atuava uma profunda renovação na mariologia dos últimos séculos. O discurso sobre Maria já não está isolado, como se ela ocupasse uma posição intermediária entre Cristo e a Igreja, mas é reconduzido ao âmbito da Igreja, como tinha sido na época dos Santos Padres.

Maria é considerada, como dizia Sto. Agostinho, como o membro mais excelente da Igreja, mas um membro seu, não fora ou acima dela:

“Santa é Maria, bem-aventurada é Maria, mas a Igreja é mais importante que a Virgem Maria. Por quê? Porque Maria é uma parte da Igreja, um membro santo, excelente, superior a todos os outros, mas sempre um membro do corpo. E se é um membro do corpo, sem dúvida o corpo é mais importante do que um membro”[6].

Logo depois do Concílio, São Paulo VI desenvolveu ulteriormente a ideia da maternidade de Maria a respeito dos fiéis, atribuindo a ela, explícita e solenemente, o título de Mãe da Igreja:

“Para a glória, pois, da Virgem e para a nossa consolação, nós proclamamos Maria Santíssima ‘Mãe da Igreja’, isto é, de todo o povo de Deus, seja dos fiéis como dos Pastores, que a invocam como Mãe amorosíssima; e queremos que com este suavíssimo título de agora em diante a Virgem seja ainda mais honrada e invocada por todo o povo cristão”[7].

“Daquela hora em diante, o discípulo a acolheu consigo”

Este seria o momento de passar da contemplação de um título ou de um momento da vida de Maria à sua imitação prática, de considerar Maria enquanto tipo e espelho da Igreja. Neste capítulo, porém, onde contemplamos Maria como “nossa mãe”, a aplicação prática é de um tipo particular. Não consiste, evidentemente, em imitar Maria, mas em acolhê-la. Devemos imitar João, tomando Maria conosco em nossa vida.

“E o discípulo a acolheu consigo” (eis tá ídia). Pensa-se muito pouco no que esta breve frase contém. Por detrás dela, há uma notícia de enorme importância e historicamente certa, porque dada pela pessoa interessada. Maria passou os últimos anos da vida com João. Aquilo que se lê no Quarto Evangelho, a propósito de Maria em Caná da Galileia e debaixo da cruz, foi escrito por alguém que vivia debaixo do mesmo teto com Maria, porque é impossível não admitir um relacionamento estreito, senão a iden­tidade, entre “o discípulo que Jesus amava” e o autor do Quarto Evangelho. A frase: “E o Verbo se fez carne” foi escrita por alguém que vivia debaixo do mesmo teto com aquela em cujo seio este milagre se realizara, ou ao menos por alguém que a tinha conhecido e frequentado.

Quem pode dizer o que significou, para o discípulo que Jesus amava, ter consigo Maria, em casa, dia e noite? Rezar com ela, com ela tomar as refeições, tê-la como ouvinte quando falava aos fiéis, celebrar com ela o mistério do Senhor? Pode-se pensar que Maria tenha vivido no círculo do discípulo que Jesus amava, sem ter tido nenhum influxo no lento trabalho de reflexão e de aprofundamento que levou à redação do Quarto Evangelho? Parece que, na antiguidade, Orígenes ao menos intuiu o segredo que há debaixo deste fato e ao qual os estudiosos e os críticos do Quarto Evangelho e os pesquisadores das suas fontes não dão, geralmente, nenhuma atenção. Ele escreve:

“Primícias dos Evangelhos é o de João, cujo sentido profundo não pode colher quem não tenha colocado a cabeça sobre o peito de Jesus e não tenha recebido dele Maria, como sua própria mãe”[8].

Agora nós nos perguntamos: o que pode significar para nós, concretamente, receber Maria em nossa casa? Este, creio, é o lugar onde colocar o núcleo sóbrio e sadio da espiritualidade monfortiana da entrega a Maria. Ela consiste em “fazer todas as ações por meio de Maria, com Maria, em Maria e para Maria, para poder cumpri-las do modo mais perfeito por meio de Jesus, com Jesus, em Jesus e para Jesus”.

“Devemos abandonar-nos ao espírito de Maria para ser movidos e guiados segundo o seu querer. Devemos colocar-nos e ficar entre as suas mãos virginais como um instrumento nas mãos de um operário, como um alaúde entre as mãos de um hábil tocador. Nem devemos perder-nos e abandonar como pedra que se joga ao mar. É possível fazer tudo isso simplesmente e num instante, com um só olhar interior ou um leve movimento da vontade, ou também com alguma breve palavra”[9].

Mas, assim não se usurpa o lugar do Espírito Santo na vida cristã, uma vez que nos devemos “deixar guiar” pelo Espírito Santo (cf. Gl 5,18), deixando que ele aja e reze em nós (cf. Rm 8,26ss.), para nos assemelhar ao Cristo? Não está escrito que o cristão deve fazer qualquer coisa “no Espírito Santo”? Este inconveniente – o de atribuir pelo menos de fato, tacitamente, a Maria as funções próprias do Espírito Santo na vida cristã – foi reconhecido como presente em algumas formas de devoção mariana anteriores ao Concilio[10]. Isso era devido à falta de uma clara e operante consciência do lugar do Espírito Santo na Igreja.

O desenvolver-se de um forte sentido da Pneumatologia não leva, porém, minimamente à necessidade de rejeitar esta espiritualidade da entrega a Maria, mas só esclarece a sua natureza. Maria é exatamente um dos meios privilegiados através dos quais o Espírito Santo pode guiar as almas e levá-las à semelhança com Cristo, exatamente porque Maria faz parte da Palavra de Deus, sendo ela mesma uma palavra de Deus em ação. Nisso, Grignion de Montfort antecipa os tempos, porque ele escreve:

O Espírito Santo, que é estéril em Deus, isto é, não dá origem a outra pessoa divina, tornou-se fecundo por Maria, com quem se casou. Com ela, nela e dela, ele fez sua obra-prima, que é um Deus feito homem, e todos os dias, até o fim do mundo, ele dá vida aos predestinados e aos membros do corpo dessa adorável Cabeça. Portanto, quanto mais o Espírito Santo encontra Maria, sua querida e indissolúvel Noiva, em uma alma, mais ele se torna diligente e poderoso para formar Jesus Cristo nesta alma e essa alma em Jesus Cristo[11].

A frase “Ad Jesum per Mariam”, a Jesus por Maria, portanto é aceitável só enquanto significa que o Espírito Santo nos guia a Jesus servindo-se de Maria. A mediação criada de Maria, entre nós e Jesus, reencontra toda a sua validade quando entendida como meio da mediação incriada que é o Espirito Santo.

Para entender, recorremos a uma analogia. Paulo exorta seus fiéis a olharem o que ele faz e a praticarem, eles também, como veem-no fazer: Praticai o que aprendestes e recebestes de mim, ou que de mim vistes e ouvistes (Fl 4,9). Ora, é certo que Paulo não quer colocar-se no lugar do Espírito Santo; simplesmente pensa que imitá-lo significa abrir-se ao Espírito, porque pensa ter ele também o Espírito de Deus (cf. 1Cor 7,40). Isto vale a fortiori de Maria, e explica o sentido do “fazer tudo com Maria e como Maria”. Ela pode, de verdade, dizer como Paulo e mais do que Paulo: Sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo (1Cor 11,1). De fato, ela é nosso modelo e mestra exatamente porque é perfeita discípula e imitadora de Cristo.

Isto é, num sentido espiritual, receber Maria consigo: recebê-la como companheira e conselheira, sabendo que ela conhece, melhor do que nós, quais são os desejos de Deus a nosso respeito. Se aprendemos a consultar e a escutar Maria em todas as coisas, ela se torna para nós a mestra incomparável dos caminhos de Deus, mestra que ensina interiormente, sem barulho de palavras. Não se trata de uma possibilidade abstrata, mas de uma realidade experimentada, hoje como no passado, por inúmeras almas.

“A coragem que tiveste…”

Antes de concluir nossa contemplação de Maria no mistério pascal, na cruz, gostaria que dediquemos um pensamento a ela como modelo de fé e esperança. Chega uma hora na vida, na qual precisamos de uma fé e uma esperança como a de Maria. Chega uma hora na vida, quando é preciso ter uma fé e uma esperança como aquela de Maria. Isso quando parece que Deus já não escuta as nossas súplicas, quando se diria que ele desmente a si mesmo e suas promessas, quando nos faz passar de derrota em derrota, e os poderes das trevas parecem triunfar em todas as frentes ao nosso redor, e dentro de nós se faz noite, como naquele dia “sobre toda a terra” (Mt 27,45). Quando, como diz um salmo, ele parece “ter esquecido de ter piedade e a ira lhe fechou o coração” (Sl 77,10). Quando chegar para ti esta hora, lembra-te da fé de Maria e grita como outros fizeram: “Meu Pai, já não te entendo, mas confio em ti!”.

Talvez Deus esteja pedindo-nos agora mesmo que lhe sacrifiquemos, como Abraão, o nosso “Isaac”: a pessoa, a coisa, o projeto, a fundação, o cargo que apreciamos, que o próprio Deus um dia nos confiou e ao qual dedicamos toda a nossa vida. Esta é a ocasião que Deus nos oferece para mostrar-lhe que ele nos é mais caro do que tudo, acima também dos seus dons, acima também do trabalho que fazemos por ele.

Deus disse a Abraão: Farei de ti o pai de uma multidão de nações (Gn 17,5), e depois do sacrifício de Isaac: Por teres procedido dessa forma e por não me teres recusado o teu filho, o teu único filho, eu te abençoarei e multiplicarei a tua descendência… Por tua descendência serão abençoadas todas a nações da terra, porque me obedeceste (Gn 22,16-18). A mesma coisa, e muito mais, diz agora a Maria: Eu te farei Mãe de muitos povos, mãe da minha Igreja! Todas as famílias da terra serão em ti abençoadas. Todas as gerações te hão de chamar bem-aventurada!

Um dos pais da Reforma, Calvino, comentando sobre Gênesis 12,3, diz que “Abraão não será apenas um exemplo e patrono, mas uma causa de bênção”.[12] Isso poderia tornar a declaração de Santo Irineu compreensível e aceitável para todos os cristãos: “Assim como Eva, ao desobedecer, se tornou a causa da morte para si e para toda a humanidade, Maria, obedecendo, tornou-se a causa da salvação (causa salutis) para si e para toda a humanidade”.[13] Como Abraão, Maria não é apenas um exemplo, mas também uma causa de salvação, mesmo se, é claro, de natureza instrumental, fruto da graça, não de mérito.

Está escrito que, quando Judite voltou, depois de ter arriscado a vida pelo seu povo, os habitantes da cidade correram ao seu encontro e o sumo sacerdote abençoou-a dizendo: Tu és bendita do Senhor, Deus Altíssimo, minha filha, entre todas as mulheres da tetra… jamais os homens cessarão de celebrar o teu louvor (Jt 13,18ss.). Nós dirigimos a Maria as mesmas palavras: Bendita és tu entre as mulheres! A coragem que tiveste jamais desaparecerá do coração e da lembrança da Igreja!

Vamos agora resumir toda a participação de Maria no Mistério Pascal aplicando a ela, com as devidas diferenças, as palavras com as quais São Paulo resumiu o Mistério Pascal de Cristo:

Maria, que era a Mãe de Deus,

não reivindicou seu privilégio;

mas despojou-se a si mesma tomando a condição de serva,

tornando-se semelhante a qualquer outra mulher.

Viveu na humildade,

obedecendo a Deus, até a morte do Filho, morte na cruz.

Por isso é que Deus a exaltou

e lhe deu um nome que, depois daquele de Jesus,

está acima de todo o nome,

para que ao nome de Maria todas as cabeças se inclinem,

nos céus, na terra e nos infernos,

e toda língua confesse

que Maria é Mãe do Senhor,

para glória de Deus Pai. Amém!

[1] Sto. Agostinho, Sobre a santa Virgindade, 5-6 (PL 40, 399).

[2] S. Irineu, Adversus haereses, III, 22, 4.

[3] Lumen gentium, 61.

[4] Lumen gentium, 60.

[5] Lumen gentium, 63.

[6] Sto. Agostinho, Sermo 72A,7 (Miscellanea Agostiniana, I, p. 163).

[7] S. Paulo VI, Discurso de encerramento do terceiro período do Concílio (AAS, 56, ‘164, p.1016).

[8] Orígene, Comentário ao Evangelho de João, I,6,23 (SCh 120, pp. 70-72).

[9] S. L. Grignion de Montfort, Tratado da verdadeira devoção a Maria a Maria, nr. 257-259 (in Oeuvres complètes, Paris 1966, pp. 660ss.).

[10] Cf. H. Mühlen Una mystica persona, trad. ital. Città Nuova, Roma 1968, pp. 575ss.

[11] Tratado, cit., n. 20.

[12] Calvino, Le livre de la Génèse, I, Ginevra 1961, p. 195 ; cf. G. von Rad, Genesi, Paideia, Brescia 1978, p. 204.

[13] Sto. Irineu, Adversus Haereses, III, 22,4 (SCh 211, p. 441).

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