Motivações bíblicas da virgindade e do celibato pelo Reino dos Céus
por Comunidade Shalom“Há aqueles que, por causa do Reino dos céus, não se casaram”.
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“Há aqueles que, por causa do Reino dos céus, não se casaram”.
Nesta meditação falarei indiferentemente de celibato, de virgindade e de continência voluntária, porque são palavras que de fato designam a mesma realidade, ou pelo menos um mesmo estado de vida. Pessoalmente prefiro usar as palavras virgindade e virgens, como as mais abrangentes. De fato, o Novo Testamento não reserva esse título apenas as mulheres não-casados. O Apocalipse chama de “virgens” aqueles que não se uniram a mulher e que, portanto, seguem o Cordeiro por onde for (veja Ap 14, 4).
A instituição desse estado de vida encontra-se no Evangelho de Mateus, no capítulo 19: “Se essa é a situação do homem com referência à mulher, não vale a pena se casar”. Ele respondeu-lhes: “Nem todos são capazes de entender esta doutrina: só entendem aqueles a quem Deus dá entendimento. Porque há pessoas que não se casam porque são eunucos de nascença, ou por outros foram feitos eunucos; e há também aquelas que se abstêm do casamento por amor do Reino dos Céus. Quem puder entender, que entenda!” (Mt 19, 10-12).
A palavra “eunuco” soa um pouco dura aos nossos ouvidos modernos, mas era dura também para os contemporâneos de Jesus. Segundo alguns a escolha desse termo insólito deve-se ao fato de os adversários de Jesus o terem acusados de ser um eunuco, não se tendo casado, da mesma forma que outras vezes o acusaram de beberão e comilão (veja Mt 11, 19). Era um palavra muito ofensiva porque, para a mentalidade hebraica do tempo, o casamento era uma obrigação moral, sendo conhecida a sentença de certo rabi Eleazar: “um homem que não tem sua mulher nem mesmo é homem” (Talmude Babilônico, Jabamot 63 a). Jesus estaria, pois, assumindo a acusação de seus adversários dando-lhe, porém, um conteúdo novo com a revelação dessa forma nova e especial de ser eunuco.
Há, diz Jesus, alguns que “não se casam” (esse é o equivalente não polêmico do termo “eunucos”) porque por nascença não o podem fazer, devido a algum defeito natural; outros há que não se casam porque são impedidos pela maldade dos homens ou pelas circunstâncias da vida; outros finalmente não se casam por amor do reino dos céus. Neste último caso a palavra “eunuco” assume um significado diverso, não físico mas moral. Foi assim que sempre o compreendeu a tradição cristã, exceto no caso bem conhecido de Orígenes que, contra seu costume, tomou essa palavra do Evangelho ao pé da letra e se castrou, pagando depois muito caro pelo seu erro.
A menção do Reino dos céus introduz de repente no discurso de Jesus uma dimensão de mistério que aumenta ainda mais com a lacônica frase final: “Quem puder, que entenda”. Ou seja: compreenderão aqueles a quem for dado compreender.
Assim nasce um segundo estado de vida e esta é sua “magna charta”. Pois não existia antes de Jesus uma condição de vida que se pudesse comparar a esta por ele instituída, se não quanto ao fato, pelo menos quanto à motivação. Os essênios de Qumran também conheciam e praticavam uma forma de celibato, mas este tinha porém uma conotação ascética, de renúncia e de pureza, mais que uma conotação escatológica. Não era uma celibato motivado pela vinda do Reino, mas quando muito, por sua expectativa. Aliás, não podia ser diversamente. Só a presença do Reino sobre a terra podia instituir essa segunda possibilidade de vida que é o celibato. “por amor do Reino”.
Esta possibilidade não anula a do matrimônio, mas relativiza-a Acontece o mesmo que com a idéia de estado no campo político: não é abolido, mas fica radicalmente relativizada pela revelação da presença contemporânea de um Reino de Deus na história. A continência perfeita está diante do matrimônio mais ou menos como o Reino de Deus está diante do Reino de César: não o elimina, mas coloca-o numa situação diferente da anterior. Deixa de ser a instância única no seu campo. Do mesmo modo como o Reino de Deus é de uma ordem diversa do reino de César, um não precisa negar o outro para poder subsistir. Do mesmo modo a continência voluntária não precisa que o matrimônio seja negado para que sua validade seja reconhecida. Aliás, essa validade somente ganha sentido a partir de uma contemporânea afirmação do matrimônio.
Formação – dezembro de 2008
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